Crónica de Alexandre Honrado
No gume da loucura
Discutíamos há poucos dias, em ambiente académico, a relação entre conectividade tecnológica e conexão cultural, estabelecendo-se então a dúvida: afinal a que estamos ligados?
Quero partilhar dois textos que escrevi há poucos dias, apenas porque o recurso às citações é sempre redutor, como se o argumento escasseasse.
Os textos de reflexão que tenho lido ultimamente são todos iguais. Convergem no tom autofágico, assinados por mais ou menos anónimos corredores dos becos da impotência. São produtos de mentes presas nos elevadores da vida, que sobem e descem sem grande distância de si, conversam sobre o estado do tempo e chovem amargura – e na sua enorme consciência parecem não ter consciência do que são naquilo que (se) dizem. Não vislumbro neles Filosofia, talvez porque a Filosofia não exista ou talvez a Filosofia atual se veja frequentemente diante de uma falsa alternativa: expor ou utilizar; Por isso, finalmente, resolvi escrever um texto de reflexão. Para o unívoco; para o quase conceito. Para a estranha estante. Para o apelo do literal. Intermitente. Ascensor: “Hoje vai chover”. Seduzido pelo verbal, mas banal, docemente banal como qualquer outro. Ao espelho, como os outros fazem, sem movimentos lógicos a não ser os que faço de dedos estendidos para as teclas do computador… como se estendesse as mãos para mim, pedindo ajuda.
As perguntas que me faço agora são avassaladoras: escrevo muitas vezes em um ato repentista. Porque escrevo, então? E porquê estas e não outras palavras? Que significante extraem do significado que eu procuro? E porque será, em última análise, que escrevo? Respondo com uma imprevisível resposta, isto é, com outra pergunta: sem a loucura, que é o homem/ mais que a besta sadia,/ cadáver adiado que procria? A pergunta de Fernando Pessoa para a minha própria interrogação.
Meditando, tenho poucas respostas, o que é um sintoma débil de saúde mental. Para Foucault, as numerosas representações da loucura, e em especial certas pinturas de Brueghel e Bosch, além do poema de Brandt sobre a “nau dos insensatos”, expressam a necessidade coletiva de simbolizar uma inquietude “soerguida subitamente no horizonte da cultura europeia”. É também nessa época que surgem os primeiros hospitais destinados a recolher loucos: no início do século XV já se registam menções ao hospital de Bedlam, na Inglaterra, como asilo para “os deserdados do espírito”. Curiosamente, esta ideia de coletivo, de loucura de todos, esbarra com o ato individual de criar, com a solidão com que nos debatemos ao fazê-lo. E ponho-me a concluir, como numa remissão, que ao manifestarmos o que somos como indivíduos procuramos tão somente a aceitação dos outros. Como crianças no primeiro dia de escola, ou povos na fronteira, agindo e paralisando com medo e desejo de serem como o outro que os vigia.
O segundo dos dois textos, deixo-o como final, retornando logo em seguida à minha loucura, ao meu criar, provavelmente lugar inquieto mas de confortos que nem devia ter abandonado.
O escritor nomeia as coisas para que elas existam. Odeia-se à flor da pele para amar-se na dimensão radical daquilo que escreve. Vive como um cego as suas cores e atira olhos à cegueira do mundo. É sensual como a sombra de um ermita ou a música que resulta do tato para o éter. Do que pensa e do que escreve faz telhado e paredes. É uma casa a soluçar ou uma janela que ri de saber como se permite abrir o que mais sente. Tem a doçura do sal e sabe que não percebe – e do não perceber faz tudo o que sabe.
Alexandre Honrado
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